Voo Air France 66

Voo Air France 66
Acidente aéreo
Voo Air France 66
A aeronave envolvida no acidente, em imagem de 2016
Sumário
Data 30 de setembro de 2017
Causa
  • erro de projeto/fabricação
  • falha destrutiva do motor, devido a falha de componente
Local 150 km a sudeste de Paamiut, Groenlândia
Coordenadas 61° 44′ 44″ N, 46° 48′ 59″ O
Origem Aeroporto Charles de Gaulle, Paris
Destino Aeroporto Internacional de Los Angeles, Los Angeles
Passageiros 497
Tripulantes 24
Feridos nenhum
Sobreviventes todos
Aeronave
Modelo Airbus A380-861
Operador Air France
Prefixo F-HPJE
Primeiro voo 10 de agosto de 2010

O Voo Air France 66 é um voo internacional regular de passageiros do Aeroporto Charles de Gaulle, em Paris para o Aeroporto Internacional de Los Angeles. Em 30 de setembro de 2017, o Airbus A380-861 de registro F-HPJE, que operava o voo, sofreu uma falha destrutiva no motor externo direito (motor nº 4) quando estava à altitude de 38 000 ft (11 600 m) em voo de cruzeiro, sobrevoando o sul da Groenlândia. A tripulação desviou a rota, e a aeronave voou por cerca de duas horas até alcançar a base aérea de Goose Bay, no Canadá, onde realizou um pouso de emergência sem dificuldades. Foi a segunda ocorrência de falha destrutiva com um motor do A380. A primeira foi com o voo Qantas 32, em novembro de 2010.

Aeronave[editar | editar código-fonte]

O A380 envolvido no acidente realizou o primeiro voo em 10 de agosto de 2010.[1] Equipado com quatro motores GP7270, fabricados pela Engine Alliance, uma joint venture norte-americana entre as empresas GE Aviation e Pratt & Whitney, foi liberado para a Air France em maio de 2011, que o operou com o registro F-HPJE. Seu primeiro certificado de aeronavegabilidade havia sido emitido em 20 de maio de 2011 e renovado pela última vez antes do acidente, em 7 de abril de 2017, com validade até 20 de abril de 2018. Na data do acidente, a aeronave acumulava 27 184 horas de voo. O motor n.º 4, que teve a falha destrutiva, tinha número de série 550178, foi entregue novo para instalação em um A380 de registro F-HPJB da Air France, na posição n.º 1 (externo esquerdo). O motor foi removido deste avião em 19 de dezembro de 2012 e instalado no A380 de registro F-HPJE na posição n.º 4 (externo direito) em 17 de abril de 2013. Quando ocorreu a falha, o motor acumulava 30 769 horas de operação, com 3 534 ciclos. O cubo das palhetas do fan de entrada do motor, componente em que se originou a falha, tinha 5 602 horas de operação e 622 ciclos desde a última inspeção.[2]

Acidente[editar | editar código-fonte]

O Airbus A380-861 operado pela Air France realizava o voo regular AF66 (Paris – Los Angeles), tendo decolado do Aeroporto Charles de Gaulle às 9h50 UTC. Às 13h49, quando a tripulação alterava o nível de voo sobrevoando o sul da Groenlândia à altitude de 38 000 ft (11 600 m), foi ouvida uma explosão, seguida de uma assimetria para a direita no empuxo da aeronave, acompanhada de forte vibração. Simultaneamente surgiram as mensagens "Eng 4 stall" (parada súbita do motor n.º 4) e "Eng 4 fail" (falha no motor n.º 4) no ECAM [en]. A tripulação desviou a rota para a base aérea de Goose Bay, no Canadá, onde foi realizada uma aterrissagem em emergência às 15h42, sem nenhum incidente adicional.

A tripulação iniciou o procedimento de pouso em Goose Bay, sendo liberada a pista 26. Ao se aproximar da altitude de 1 000 ft (305 m), o comandante alterou o controle para manual. O taxiamento precisou ser interrompido várias vezes para que se pudesse recolher os detritos que caíram na pista durante o pouso. Às 16h22 (quarenta minutos depois da aterrissagem) todos os motores foram desligados. A gravação dos dados de voo parou automaticamente cinco minutos depois que o último motor foi desligado de acordo com a lógica de programação dos gravadores. Os passageiros foram atendidos pela tripulação e pelo pessoal de solo e não puderam deixar o aeroporto porque seu número excedia a capacidade de atendimento do setor de imigração do aeroporto e as acomodações disponíveis em Goose Bay. Todos receberam uma refeição no avião e o comandante os reuniu em grupos de cinquenta para que fossem informados do que havia ocorrido. Alguns passageiros conseguiram acessar o terminal do aeroporto. Foram providenciados voos para continuar a viagem até Los Angeles, sendo que o último passageiro deixou o A380 às 8h10 do dia seguinte ao do acidente.[2]

Uma inspeção visual externa no motor n.º 4 revelou que as palhetas do conjunto rotativo na entrada do motor, junto com a entrada de ar e a carenagem haviam se perdido em voo. Faltava a maior parte do cubo das palhetas, junto com as palhetas, o cone de entrada, a entrada de ar e os capôs direito e esquerdo. Parte do cubo ainda estava presa ao eixo da turbina de baixa pressão. A superfície da fratura do cubo apresentava-se fosca com uma aparência granular em quase toda a sua circunferência. O cubo estava travado e não podia ser girado. Vários detritos foram encontrados no motor e na pista, como parafusos de fixação, pedaços de revestimento, pedaços de palhetas e dois pedaços do cone dianteiro. Um dos pedaços de palheta estava incrustado entre as palhetas do compressor de baixa pressão e o anel externo.[2]pg.16 Várias marcas e deformações foram observadas na asa e no pilone da nacele do motor nº 4, resultantes do impacto das partes do motor que se desprenderam em voo. Algumas marcas e deformações também foram observadas no bordo de ataque, flaps, ailerons e nas carenagens dos trilhos dos flaps em ambos os lados do motor, bem como no estabilizador horizontal. Nenhum detrito penetrou na cabine.[2]

Investigação[editar | editar código-fonte]

Por volta das 19h, o Centro de Controle de Operações da Air France informou ao BEA que o Airbus A380 de registro F-HPJE, havia sido desviado para Goose Bay depois de uma falha destrutiva em um de seus motores em voo. A Agência de Segurança de Transporte do Canadá [en] (TSB) iniciou uma investigação preliminar e notificou o BEA de uma ocorrência grave em seu espaço aéreo. Quatro investigadores do BEA representando a França (Estado de registro, operação, projeto e fabricação da aeronave) viajaram para Goose Bay, acompanhados por consultores da Airbus e da Air France. Um investigador do Conselho Nacional de Segurança nos Transportes dos Estados Unidos (NTSB), Estado de projeto e fabricação dos motores, acompanhado por consultores do fabricante Engine Alliance completaram a equipe, liderada pelos investigadores canadenses da TSB. A equipe de investigação conseguiu acessar o avião no dia seguinte. Em 2 de outubro, um quinto investigador do BEA viajou para Ottawa (sede do TSB) para acompanhar a análise dos dados dos registradores de voo (FDR). A análise dos dados revelou que a falha ocorreu quando a aeronave sobrevoava o espaço aéreo da Groenlândia, que é uma região autônoma da Dinamarca. A partir deste ponto, a Agência Dinamarquesa de Investigação de Acidentes [en] (AIB DK) foi contatada e delegou a investigação ao BEA, em conformidade com a legislação internacional sobre investigação e prevenção de acidentes e incidentes na aviação civil. O BEA manteve os membros da equipe de investigação e a estrutura do grupo inicialmente definida e incluiu o AIB DK como Estado de ocorrência. A investigação foi organizada em três grupos de trabalho nas áreas: aeronave, aviônica e operações. Os representantes e assessores credenciados foram divididos entre esses três grupos.[2]

Recuperação de um fragmento do cubo das palhetas em junho de 2019, 21 meses depois do acidente

Os destroços do motor caíram em uma área deserta na Groenlândia e os elementos essenciais à investigação só foram encontrados cerca de 21 meses depois do acidente. Só foi possível determinar o processo de falha depois que um fragmento de cubo das palhetas foi encontrado. Em 4 de outubro de 2017, a agência dinamarquesa AIB DK solicitou que um helicóptero operado pela Air Greenland sobrevoasse a zona identificada como a mais provável da ocorrência. Algumas peças foram encontradas e recuperadas durante os três voos realizados na semana seguinte,[3] até que uma grande precipitação de neve impediu novos voos no local. A neve cobriu todas as demais peças que ainda estavam no solo, impedindo novos avistamentos. Foi determinado no início da investigação, que a recuperação das partes que faltavam, em particular, os fragmentos do cubo das palhetas, era essencial para estabelecer as circunstâncias e os fatores que poderiam revelar as causas do acidente. O uso de outros meios de detecção foi então considerado. Pelas dificuldades de acesso, adversidades e riscos presentes durante o inverno (baixas temperaturas, dias curtos, mudança de tempo e presença de fendas no gelo) foi necessário aguardar o próximo período ideal para dar continuidade às operações de busca e recuperação. Após uma fase de avaliação dos meios de busca, optou-se por realizar duas operações consecutivas: uma campanha aérea, consistindo na utilização de radares embarcados, para tentar detectar e localizar as peças faltantes sob a camada de neve, e uma campanha terrestre, que consistiu na recuperação das partes anteriormente localizadas durante a campanha aérea, ou na realização de uma busca sistemática na área, com o auxílio de radares de penetração no solo. Em maio de 2019, novos equipamentos de detecção foram incorporados à missão, pois até então o cubo das palhetas, peça essencial à investigação, não havia sido localizado.[4] Enquanto aguardava a recuperação das peças, o fabricante do motor realizou simulações pelo método dos elementos finitos. Todos os componentes recuperados na Groenlândia durante a primeira fase foram examinados a fim de entender a dinâmica da falha, caso os fragmentos do cubo das palhetas não fossem encontrados. Um quadro de falhas foi elaborado e considerados dois cenários possíveis: o de uma falha de material (embora não houvesse até então nenhum elemento que a confirmasse) e o de danos durante operações de manutenção. Em junho de 2019, após o desenvolvimento de um sensor específico e restringir as áreas de busca a um número limitado, foi encontrado um fragmento do cubo das palhetas.[5] O exame deste fragmento eliminou a possibilidade de danos durante a manutenção. Em vez disso, foi encontrada uma falha resultante da progressão de uma trinca que se originou na camada imediatamente abaixo da superfície da peça. A origem da trinca situava-se em uma região de microtextura, sob a raiz da palheta, na junção com o cubo, e ocorreu devido a um fenômeno de fadiga por resfriamento. A trinca progrediu por cerca de 1 650 ciclos até a quebra total do cubo.[2]

Conclusões[editar | editar código-fonte]

Em setembro de 2020, o BEA publicou o relatório final. As conclusões da investigação foram que a falha não foi antecipada nem evitada por uma ação operacional ou de manutenção e as inspeções de produção do cubo, por serem insuficientes, não revelaram nenhuma anomalia. O fenômeno da fadiga por resfriamento não foi levado em consideração no projeto e certificação do motor. Na época foi aceito pela comunidade científica, pela indústria e pela autoridades de certificação, que a liga de titânio Ti-6-4 (da qual é fabricado o cubo) não era sensível ao fenômeno da fadiga por resfriamento. Os fatores que também contribuíram para a falha foram, além da falta de conhecimento técnico dos responsáveis pelo projeto, fabricação e certificação da peça, a não realização de ensaios não destrutivos, que poderiam detectar a presença de macrozonas incomuns nas peças de liga de titânio. Também não foi considerado o aumento no risco de ter grandes macrozonas em peças fabricadas com a liga Ti-6-4, devido ao aumento nas dimensões dos motores e seus componentes.[2]

Recomendações e procedimentos[editar | editar código-fonte]

As informações técnicas da frota de A380 da Air France foram atualizadas e vários boletins de serviço foram publicados pelo fabricante após o acidente, em especial para a detecção de danos potenciais no cubo das palhetas, mesmo sem o laudo final do relatório do BEA, no pressuposto de que a origem da falha poderia estar na superfície da face frontal do cubo. Inspeções visuais exigidas pelo primeiro boletim publicado após o acidente detectaram vários casos de danos nas faces frontais dos cubos. Em alguns casos, foi devido a um objeto ter atingido essa região do cubo durante as operações de manutenção. Durante a manutenção, o uso de ferramentas inadequadas na remoção do anel de travamento das palhetas poderia ter causado os danos. A operação de remoção do anel foi descrita como "difícil" pelos operadores, devido à sua rigidez. O fabricante projetou um novo anel de travamento, mais elástico, o que facilitou as operações de manutenção. A implantação desse novo anel começou em novembro de 2019. Em março de 2020, a Engine Alliance indicou que todas as inspeções visuais exigidas pelos boletins de serviço haviam sido realizadas. No total, foram encontrados dezenove cubos com avarias. Destes, dois foram descartados porque o dano estava fora dos limites de reparo, os outros voltaram ao serviço após serem reparados. Foram também inspecionados todos os cubos com mais de 3 500 ciclos. Adicionalmente, o BEA recomendou que a Agência Europeia para a Segurança da Aviação (EASA) e a Administração Federal de Aviação (FAA) garantissem que os critérios de projeto, dimensionamento e métodos fossem alinhados com os processos de fabricação e verificações em produção. Isso para todas de peças críticas do motor feitas em particular da liga de titânio Ti-6-4, de modo que o risco de falha dessas peças devido ao fenômeno da fadiga por esfriamento permanecesse controlado.[2]

Referências